(Texto original publicado no coletivo de blogs FreakGeeks, em 01/11/2014)
Meu banheiro tem 50 anos.
A mesma idade do prédio onde moro, lógico. Mas este quadradinho da casa, ou melhor, do apartamento, é o centro de uma comunidade que me tira o sono e me dá repulsa na alma. Os seres que vivem nele me causam aspecto.
Peludas, nojentas. Mosquinhas de banheiro. Minúsculas bolinhas voadoras nascidas no cerne dos restos que se desprendem do meu corpo. Comedoras compulsivas de peles mortas, de cabelos que caem e se concentram nos canos e ralos. Espalham-se por todo o lugar, recheando o branco azulejo de pontos pretos móveis.
Perdoem-me os defensores da reencarnação, mas acredito que já matei diversos iluminados ou santos que ainda pelejam nos ciclos de mortes e renascimentos, tipo Samsara.

Porque eu mato mesmo. Sem dó. E ainda gosto de imaginar que estou ajudando a estas nobres almas a transpor mais rapidamente esse momento tão difícil de sua jornada espiritual.
Caso ainda não saiba do que estou falando (sortudo desgraçado), esses insetos também são conhecidos como “mosca dos filtros” ou “mosca dos ralos”. É uma família de animais muito mais próximas dos mosquitos do que das moscas. O meio científico as nomeia de Psychodidae ou Psycoda.
São apenas 2mm de um corpo aprisionado em uma existência medíocre, que só deus sabe para que serve. O pior vem em seguida: as coisinhas, apesar de chafurdarem em tudo o que há de mais nojento em um banheiro, pasmem, são inofensivas. Não representam nenhum tipo de risco à saúde humana.

São os seres mais inofensivos do universo. Nem sequer passam uma “leishmaniosezinha” de leves, essas nojentinhas. Apesar de elas não surgirem da falta de higiene, ter essas companhias de cerdas negras no banheiro é sinal de sujeira.
Do nada, comecei a fazer analogias grotescas entre a filosofia Zen Budista e as sessões de mata-mata que costumam acontecer ao banho. Pensei em como uma situação tão banal podem personificar de modo metafórico, os inúmeros reveses que constituem a vida.
Tipo assim:
EGO
Além do tal nojinho de ter essas companhias em casa, o maior problema com elas é o profundo e preocupante pensamento do “o que os outros vão pensar”. Admito que livrar-se desse karma é o mais difícil.
A maior preocupação, a vontade de exterminá-las, está totalmente ligada ao que o outro pode comentar a respeito do seu modo de vida.
SUA MENTE NO AGORA
O único lugar em que as mudanças fazem sentido. É onde seu esforço e escolhas tomam forma. Esvazie a mente, mire no alvo, esmague as moscas.
GRANDES OPORTUNIDADES
Se aparecem, não pense, pegue-as. Não hesite. O melhor momento é quando você age. Escute os ruídos, perceba as mudanças. Pegue a oportunidade, só não destrua os móveis da casa. Mas não hesite.
ILUSÕES
Moscas volantes são fenômenos entópticos caracterizados por formas semelhantes a sombras que aparecem no campo visual do indivíduo. Tem formas diversas, como pontos, linhas, ou fragmentos de teias de aranhas. Flutuam vagarosamente em frente aos olhos. Por isso, cuidado com as moscas volantes: elas parecem os mosquitos voadores, mas são apenas ilusões de sua retina cansada.
A ESSÊNCIA DAS COISAS
Se eu soubesse de verdade o real significado de tudo o que nos cerca e, principalmente, por que determinados eventos caem sobre nossas frágeis vidas, estaria rico de dinheiro e sabedoria.
As moscas existem, não entendo o significado da sua existência (como se entendesse o meu). As repudio, as extermino, e não as quero em minha presença.
De qualquer modo, parece que vivemos dentro de um vazio em que tudo o que existe é parte inerente da existência de cada e todas as coisas/seres.
Eu e as moscas do banheiro somos um só. Um único corpo simbionte alimentando-se de tragédias e vidas ordinárias mútuas.
Elas querem apenas os restos da minha pele, eu só quero dar grandes significados para a vida.