*A Invenção da solidão
Paul Auster
1947-2024
Esse exercício de se abrir ao novo e estar sempre desperto para as nuances interessantes da vida que estão escondidas nos cantinhos da normalidade e do dia a dia, dá uma preguiça danada.
Gasta-se muita energia cognitiva para encontrar e escrever bons assuntos e histórias. É por isso que tem gente preguiçosa e “um tanto tonta” que ama quando algo razoavelmente ruim lhes acontece, pois é pauta boa caindo no colo. Um esvaziamento de vida tão gritante que qualquer desencontro mínimo é motivo de texto. E é justamente isso que não quero ser.
Quero a pauta escondida, o sonho emblemático, o lado da notícia não visto. Quero ter o espírito desbravador e o olhar do querido (e agora finado, Rest In Peace!) Paul Auster, literato do cotidiano, narrador de contos extraordinários que brotavam do trivial, filósofo de episódios desconexos, descobridor de padrões improváveis e da beleza nas rotinas mais ordinárias, no sentido de monótonas.
Aliás, Auster tinha uma boa teoria sobre o motivo de algumas pessoas tornarem-se escritoras:
Um verdadeiro leitor entende que os livros são um mundo em si – e que esse mundo é mais rico e interessante do que qualquer outro por onde já viajamos. Acho que é isso que transforma rapazes e moças em escritores – a felicidade que você descobre vivendo nos livros. Você ainda não existe há tempo suficiente para ter muito o que escrever, mas chega um momento em que você percebe que foi para isso que nasceu.
Ou seja, é tipo beber ou comer demais: lemos, lemos e lemos sobre tudo o que é assunto, mas chega uma hora que nos empanturramos e é preciso regurgitar tanta leitura. Aí nasce a necessidade de escrever, seja um conto, um romance completo ou post bosta como este.
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Saindo do trabalho, indo para a estação Trianon-Masp, em plena Paulista, quando voltava do trabalho, um morador de rua foi até a calçada, baixou suas calças e verteu ali mesmo tudo o que o seu estômago dispunha. Foi rápido, mas deu tempo de redirecionar o olhar e não ver a cena. Triste.
Em que momento as coisas deram errado? O que o levou às ruas, que é, ao mesmo tempo, o seu refúgio e sua prisão? Como é viver tendo apenas as pedras do calçamento e o concreto duro como testemunha do peso de sua existência?
Quando me confronto com situações assim, imagino que todos que vejo carregam um universo inteiro dentro de si, repleto de sonhos desfeitos ou esperanças renascidas. E aquele homem não foi aquilo sempre. Um dia já foi um bebê indefeso. E só Deus sabe que caminhos sua vida tomou para chegar até aquele momento.
Acho que ter essa perspectiva ajuda a olharmos com menos julgamentos ou repulsa. Todos nós já fomos crianças risonhas e meigas.
O que Paul Auster diria?
O mundo é tão imprevisível, coisas acontecem de repente, inesperadamente, e queremos sentir que estamos no controle de nossa própria existência. Em tantas maneiras não estamos. Somos governados pelas forças do acaso e coincidência.
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Quanto mais leio, mais escrevo. Quanto mais escrevo, mais me comparo. Quanto mais me comparo, mais me acho não capacitado. São tantas pessoas excelentes escrevendo textos fantásticos. Mas não podemos parar. É nosso dever exercermos o que achamos que somos bons. Auster me ajuda novamente:
Escrever não é agradável. É um trabalho duro e sofre-se muito. Por momentos, sentimo-nos incapazes: a sensação de fracasso é enorme e isso significa que não há sentimento de satisfação ou de triunfo. Porém, o problema é pior se não escrever: Sinto-me perdido. Se não escrever, sinto que a minha vida carece de sentido.
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Há pessoas que se custa a acreditar em suas partidas. Se fosse para definir, diria que tinha uma escrita esperta, rápida e urbana, seja lá o que isso signifique para você.
A Folha de S. Paulo falou sobre sua trajetória e a obra, morto na terça-feira (Se você está lendo isso aqui no futuro, ele morreu no dia 30 de abril de 2024). A Folha também fez uma reportagem que mostra por onde começar a ler o escritor. Lógico que, safados que são, a página tem paywall e provavelmente só assinantes terão acesso ao roteiro. Mas tudo bem, copio e colo aqui para a posteridade:
‘A Invenção da Solidão’ (1982)
Mistura de livro de memórias com ensaios sobre a literatura e o ato de crescer lendo sozinho, foi a obra que catapultou Auster à fama. Isso aqui é coisa fina. É aquele tipo de leitura que você pensa “Hum, então isso é possível?”.
‘A Trilogia de Nova York’ (1987)
Três novelas que renovam o gênero policial com narrativas intrincadas, é até hoje a obra mais conhecida do autor
‘Leviatã’ (1992)
Dois escritores tentam mudar o mundo com suas palavras, até que um deles opta por métodos mais drásticos em uma obra em ritmo de thriller.
‘O Caderno Vermelho’ (1995)
Um livro curto, de menos de cem páginas, eficiente em introduzir os principais temas da obra do autor: o poder do acaso e as coincidências sobre a vida das pessoas. Eles deixaram como quarto lugar, mas acho que deveria ser o segundo.
‘Timbuktu’ (1999)
Obra premiada que mescla fábula e realismo ao contar a história de um profeta sem-teto e seu cachorro, que entende a linguagem dos homens. Nunca li.
‘A Noite do Oráculo’ (2003)
Mosaico de narrativas em que um escritor passa a suspeitar que as histórias que cria podem definir o futuro de pessoas reais, inclusive de sua família. Não li também.
‘4321’ (2017)
Adequado a leitores que querem se aprofundar mais na obra do autor, narra quatro versões da vida de um mesmo homem, com alterações sutis, mas fundamentais. Esse está na fila mas acho que vou ler lá para os 50 anos. A fila é enorme por aqui.
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A literatura é essencialmente solidão. Escreve-se em solidão, lê-se em solidão e, apesar de tudo, o ato de leitura permite uma comunicação entre dois seres humanos.
Continuo daqui tentando ser, mesmo que jamais seja. O caminho parece infinito, mas é prazeroso de percorrer.
Obrigado por tudo. Vá em paz, mestre!