Jean Simmons , Martita Hunt e John Mills em Grandes Esperanças (1946)
( Ao som de BENT, Kisses…)
Abro um vinho e ele tem gosto de você, do seu suor agridoce quando fode, da sua raiva, do seu desejo ardente, da sua saliva, do seu sonho luxurioso comigo na noite passada.
Ele desce pela garganta como um jorro de energia de todas nossas histórias. E só o que me vem à mente é a capacidade de sentir que tudo vai acabar.
Não é só eu que acho, os astros dizem, apesar de não terem a minha fé: “a Lua está Cheia nos últimos graus de Libra, movimentando sua vida social e aproximando amigos (novos e antigos). Mas o período está marcado pelo fim de uma relação”.
E quando se trata de previsões negativas, elas sempre acontecem nos meus roteiros. E é exatamente aqui onde tudo parece vertiginosamente sufocante. Porque eu acredito piamente que o amor precisa de oxigênio limpo e sem energias ruins para continuar engatinhando pela vida.
O amor morre asfixiado!
Repare quando ele estiver “partido”. A metáfora está errada. Ele sufoca, agoniza. Ele quer emergir da dor caudalosa, das águas turbulentas de uma paixão que não conseguiu se navegar.
Este é aquele momento em que o inferno mental olha no espelho da sua alma. O sentimento é de ser um demônio desprezado e sem a mínima possibilidade do perdão divino. Sentar à beira do precipício, do caos psicossomático das entranhas. Há tristeza, há solidão, há o fel encharcando o coração e marejando os olhos. Afogando.
Resta apreciar o momento medonho? Há beleza na fúria do dragão de sentimentos ruins?
É bílis, bílis, bílis e só bílis!
Ainda há tempo para uma vida cheia de experimentos, de novos encontros e desencontros, de novos lugares para ir, comer e beber?
Ainda há tempo para conceber um filho e amá-lo e defendê-lo e fazer isso com todas as forças, como um chacal faminto?
Ainda há tempo para olhar o sol na manhã de temperatura agradável, respirando o céu azul recheado de longínquos cirros na alta atmosfera e aquela voz esperançosa do seu íntimo murmurando “este dia vai ser muito foda”?
A música perfeita já foi gravada? A memória perfeita já foi vivida? O beijo em lábios de algodão ainda está por vir?
Ainda dá tempo de te mostrar uma música nova que eu ouvi esses dias e que tenho certeza absoluta que vai gostar?
Ainda dá tempo de te chamar para uma feira de produtores de publicações independentes que fiquei sabendo pelo Instagram?
Ainda dá tempo de experimentar com você aquela cerveja nova que por dias e dias está na minha geladeira? Ou será que ela ficará intocada para sempre, significando tudo o que há de mais triste e não realizado nesta e nas próximas vidas? O bolo da sra. Havisham?*
E, finalmente, sobrou tempo para o mais difícil, o mais estranho, o mais aterrador sentimento que por algum motivo achamos que pesa mais que a âncora do navio fantasma Lady Lovibond, mas que é tão leve e doce e lindo e mágico quanto os últimos pensamentos antes de dormir quando se é criança feliz: ainda há tempo de dizer “Eu te Amo”?
*A Sra Havisham é uma personagem do romance de Charles Dickens , Grandes Esperanças (1861). Rica e abandonada no altar quando jovem, mora em uma mansão arruinada. Humilhada e de coração partido,ela sofreu um colapso mental e permaneceu sozinha, usando o mesmo vestido de noiva com o bolo do casamento intacto na mesa. Parou todos os relógios da casa às vinte para as nove da manhã: a hora exata em que recebeu a carta do noivo que desistia do compromisso.