Quando te conheci, em uma noite de junho de 2012, lembro nitidamente do abraço mais frio que já senti. Era congelante, mortal. Ao mesmo tempo, parecia uma energia de despertar, de sopro divino, de algo que estava nascendo. Era um marco para uma mudança de vida. Era um rito de passagem. E eu nem percebi.
A vida foi passando, mesmo com os estranhamentos. Tudo era novo ao seu lado. E não demorou muito para o teu caos fazer morada em meu coração. E foi bom.
Dançamos as madrugadas quentes até o sol laranja explodir no horizonte. Voltamos para casa nas manhãs de domingos outonais olhando as marcas e desenhos multicores em sua pele cinza-concreto. Tecemos juntos uma colcha de retalhos de histórias divertidas, muitas vezes solitárias e tristes.
Me envolvi demais em tuas curvas e orvalhos. Misturamos demais nossos odores, sabores e almas. Você se tornou um pouco do que sou. E eu me tornei um pouco do que você é.
E neste instante, cheio de nostalgia, “canto as neblinas” de teu sorriso cínico e teu bafo de cigarro e café barato de boteco.
Me avisaram: “aquilo é uma ingrata devoradora dos próprios filhos”. E era verdade. Me engoliu e regurgitou, em uma espécie de renascimento violento e aterrorizante, mas logo apaziguado por seu canto de dormir de ruído branco de garoa e pneus em teus asfaltos quentes.
A gente acha que vai se perder em tua selva rígida. Mas que nada! O que acontece de fato é que aprendemos a ver os detalhes, os encantamentos quase imperceptíveis que você oferece. Mas precisa estar desperto e com o coração aberto para entender isso.
Todas as tuas incertezas me deram o melhor, me moldaram para o bem. Eu sou o teu melhor “flanêur”!
E cacete, garota, tu vai fazer falta…
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São Paulo, de Sérgio Milliet.
“Canto a cidade das neblinas
e dos viadutos
minha cidade
amante de futebol e vendedora de café
Os aventureiros bigodudos
como nas fitas da Paramount
o Friedenreich pé de anjo
e a bolsa de mercadorias
as chaminés parturientes do Brás
os quinze mil automóveis orgulhosos
no barulho ensurdecedor dos klaxons
e a cultura envernizada dos burgueses
os engraxates da Praça Antônio Prado
e o serviço telegráfico do “Estado”
a febre do dinheiro
as falências sírio-nacionais
a especulação sobre os terrenos
a politicagem e os politiqueiros
e a negra de pó de arroz
e até os bondes da Light
para o Tietê das regatas e dos bandeirantes
os homens dizem que tu és ingrata
e que devoras os teus próprios filhos…
Mas que linda madrasta tu és
toda vestida de jardins!
Minha cidade
Amo também teus plátanos nostálgicos
imigrantes infelizes
teus crepúsculos de seda japonesa
tuas ruas longas de casas baixas
e teu triângulo provinciano…”